Viagem de Bike Brasília (DF) a Araguari (MG) a Brasília (DF). Verão 2006.
VIGEM
DE BIKE - CARNAVAL 2006 |
BRASÍLIA
(DF) – ITUMBIARA (GO) ARAGUARI
(MG) – BRASÍLIA (DF) |
ATUALIZADO
EM 09/2022 |
BRASÍLIA (DF) – ITUMBIARA (GO) – ARAGUARI (MG) BRASÍLIA (DF) |
|||
DATA |
TRECHO |
DISTÂNCIA |
∑ |
25/02/2006 |
Brasília (DF) a Abadiânia (GO) |
130 km |
130 km |
26/02/2006 |
Abadiânia (GO) a Hidrolândia (GO) |
121 km |
251 km |
27/02/2006 |
Hidrolândia (GO) a Morrinhos (GO) |
101 km |
352 km |
28/02/2006 |
Morrinhos (GO) a Itumbiara (GO) |
90 km |
442 km |
01/03/2006 |
Itumbiara (GO) a Araguari (MG) |
120 km |
562 km |
02/03/2006 |
Araguari (MG) a Catalão (GO) |
81 km |
643 km |
03/03/2006 |
Catalão (GO) ao Sonho Verde (GO) |
153 km |
796 km |
04/03/2006 |
Sonho Verde (GO) a Brasília (DF) |
166 km |
962 km |
TOTAL |
962 km |
1º dia |
25/02/2006
- Sábado de Carnaval |
Brasília (DF) a Abadiânia (GO) - 130 km |
Às 9h 45, ao deixar a quadra na qual moro em
Brasília (DF), iniciei a jornada do Carnaval 2006, pedalando sob céu rutilante,
cheio de Sol, poucas nuvens e temperatura em agradáveis 26°C.
Segui pelo Eixo Rodoviário Norte, transpus o mergulhão [1] - [2] sob a Estação Rodoviária e atingi o Eixo Rodoviário Sul, acesso à saída da Capital do País nas direções Sul e Sudeste (S/SE).
[1] Conhecido popularmente por “Buraco do Tatu”.
[2] À
época da construção do Plano Piloto de Brasília foi feito o
mergulhão para evitar o cruzamento dos Eixos Rodoviários e Monumental em
ângulo reto [90º] (foto).
Eis o Marco Zero do Plano Piloto de
Brasília (DF).
(Notas do Autor).
Marco Zero do Plano Piloto de Brasília. Arquivo Público do DF.
Marco Zero do Plano Piloto de Brasília. Arquivo Público do DF.
Ao término do Eixo Rodoviário Sul (Rodovia DF –
002), abandonei-o e ingressei na DF – 051, pedalando até a alça de acesso à DF
– 003, logo deixada para trás, defronte ao Museu Vivo da Memória Candanga,
quando me utilizei da DF – 079 para alcançar o km zero da BR – 060, Rodovia
Federal que liga Brasília (DF) a Goiânia (GO). Eram 11h 15. Até aquele ponto da
viagem, 31 quilômetros percorridos em 1 hora e 30 minutos.
A BR – 060 em seus primeiros quilômetros – uns sete talvez –, serve de limite entre duas Regiões Administrativas do Distrito Federal: Samambaia (R.A XII) e Recanto das Emas (R.A XV), ambas densamente habitadas.
Sendo Sábado de Carnaval, o trânsito estava mais intenso do que o habitual e havia a frenética e costumeira movimentação no acostamento: carroças, ciclistas pela contramão, pessoas esperando ônibus em pontos improvisados e carros que saem e entram na estrada sem aviso prévio.
Fiz a primeira parada no Posto Chaves, localizado no trevo de acesso a Santo Antônio do Descoberto (GO), município do Entorno do DF. Eram 11h 45. Havia pedalado 43 quilômetros em 2 horas. Excelente média. Faltavam 77 quilômetros para alcançar Abadiânia (GO), local onde foi feito o 1º pernoite.
Às 12h, voltei à estrada, passei pelo Posto da Polícia Rodoviária Federal e poucos metros à frente a rodovia passava por obras de duplicação. A nova pista está pronta, embora não tenha sido entregue ao tráfego. Isso me favoreceu, porque pedalei em asfalto novo e sem me preocupar com o trânsito. Nos 30 quilômetros seguintes reinei absoluto pelas novas faixas de rolamento da BR – 060.
Passei por algumas máquinas que davam retoques no
piso asfáltico, enquanto outras terminavam a pintura das faixas centrais
(linhas de divisão de fluxo) e das faixas laterais (linhas de bordo).
Atualização: o trecho de Brasília (DF) a Goiânia (GO) está 100%
duplicado. |
Parei na Lanchonete Coyote às 13h 55 e degustei
delicioso caldo de cana. 65 quilômetros foram vencidos. Faltavam 65 para
Abadiânia (GO). Retomei a viagem às 14h 15.
Logo após a divisa DF/GO, transpassei um trecho [4 quilômetros] marcado pelos incontáveis acidentes que ceifaram muitas vidas, as temidas e – às vezes – fatais “Sete Curvas”.
Trata-se de um traçado deveras sinuoso no qual a rodovia vence um forte aclive com quatro curvas fechadas; no declive que se segue, três curvas igualmente fechadas, que terminam numa ponte [em curva] sobre o Rio São Bartolomeu. Tenso!
Atualização:
as obras de duplicação abriram um caminho que passa ao largo das Sete Curvas,
eliminando o traçado tortuoso e, por extensão, as curvas fechadas, que agora
são abertas e, por extensão, menos sinuosas. O
trecho antigo foi desativado e, consequentemente, encontra-se
abandonado. Seguem fotos. |
Vencido o trecho retificado das fatídicas “Sete Curvas” avistei – a distância de uns 60 metros – trânsito parado a partir da ponte sobre o Rio Descoberto. Um operário da empreiteira, que realiza as obras de duplicação naquele trecho, segurava uma placa com formato de octógono regular indicando "PARE"!
Apenas uma faixa de rolamento estava aberta ao tráfego. Na outra, máquinas refaziam o asfalto, enquanto equipamentos de terraplanagem preparavam a parte a ser duplicada.
Isso tornou o trânsito lento. Mas para mim pouca diferença fez, pois o acostamento não estava em obras e por ele continuei a pedalar, mas sempre sinalizando ao operador da placa PARE/SIGA que eu estava na área.
A média horária caiu bastante por causa das obras e das subidas após a passagem do Rio Descoberto. Foram 14 quilômetros de subidas leves e médias. Vencidos esses ascensos, veio uma descida forte até a ponte sobre o Rio Areias, depois mais aclives até a fábrica da cerveja Schincariol.
Daquele ponto em diante, a rodovia se encontra duplicada. Isso significou pedalar mais tranquilo, sem máquinas e pista do “lá vai um”. Parei no Posto Fazendão. Fazia um calor demencial.
Após a parada, voltei à lida no pedal e cumpri 12 quilômetros até Alexânia (GO).
Há 34 anos (1972 – 2006) morando em Brasília (DF) e
passando com relativa frequência por Alexânia (GO) – ora de carro, ora de bike
– constato que a localidade é pacata e nela tudo parece transcorrer como
sempre, ou seja, sem transcorrer.
Pequena, carente e com poucas opções de trabalho, Alexânia (GO) abriga uma população em torno de 26 mil habitantes, muitos dos quais se deslocam para a labuta diária em Brasília (DF) (distante 90 km) ou Anápolis (GO) (distante 70 km).
Ao longo do movimentado perímetro urbano, proliferam botequins, oficinas mecânicas, ferros-velhos, pequenos empórios, igrejas, inferninhos e hotéis bastante simples. Vi moradores nas portas e janelas de casas simples a espiar o vai e vem na BR - 060.
O perímetro urbano, atravessado integralmente pela rodovia, é repleto de lombadas, que se tornaram pontos de venda de biscoitos, água mineral, refrigerantes, pássaros engaiolados, queijo de trança e tudo mais que os ambulantes possam oferecer aos viajantes.
Parti às 16h 40 para os últimos 30 quilômetros daquele sábado de Carnaval. O jogo do Fluminense versus Friburguense, pelo Campeonato Carioca 2006, estava para começar. “Quando chegar a Abadiânia, procurarei saber qual foi o resultado”, pensei.
A BR – 060, duplicada e com asfalto novo, estava muito movimentada na direção na qual seguia. Muita gente indo passar o Carnaval em Anápolis (GO), Goiânia (GO), Caldas Novas (GO), o paraíso das águas quentes.
Não existe pontos de apoio entre Alexânia (GO) – que ficou para trás – e Abadiânia (GO), 30 quilômetros à frente. Somente asfalto e boas subidas intervaladas por tímidas descidas. Percorri esse trecho em 2 horas.
Às 18h 40, com uma réstia de claridades no Oeste,
cheguei ao Hotel Azevedo, no perímetro urbano de Abadiânia (GO).
Ao entrar no quarto do hotel, deveras abafado por ter recebido Sol da aurora ao ocaso, liguei a TV para assistir aos últimos lances do jogo do Fluminense.
Que decepção. Perdeu por 4 a 1 para a Friburguense e deu adeus ao Campeonato Carioca 2006. Vida que segue.
Tomei banho e saí em busca de víveres. As opções de lanche/janta [em Abadiânia] são ruins.
Decidi ir [a passos] ao Jerivá, pamonharia bem ajeitada, às margens da BR – 060 e distante 2.000 metros do hotel.
Fechei a noite batendo um prato comercial
caprichado e caminhando (ida e volta) 4.000 metros que, após 130 quilômetros de
pedal, é um excelente exercício para os músculos das pernas.
2º dia |
26/02/2006, Domingo de Carnaval |
Abadiânia (GO) a Hidrolândia (GO) - 120 km |
O Hotel Azevedo não oferece café da manhã nas
estadas de sábado para domingo. Portanto, a primeira refeição do dia foi na
padoca adjacente à hospedaria ou estalagem.
O dia estava radiante. Céu claro, poucas nuvens, Sol enchendo o caminho de luz, calor e moderado vento fresco. Temperatura em amigáveis 25°C, por enquanto. Nenhuma previsão – felizmente – de chuva.
Iniciei os trabalhos às 9h num embate com vento contra. Pedalava forte. Uma longa reta, depois de Abadiânia (GO), se estende por seis quilômetros.
A seguir um forte declive até a transposição da ponte sobre o Rio das Antas. Daí para frente, fortes subidas que deram um tempo defronte à Ambev Cervejaria. Parada necessária para hidratação. Estava a 16 quilômetros de Anápolis (GO).
Alcancei o posto da Polícia Rodoviária de Anápolis (GO), às 10h 50. À minha direita, um pátio repleto de carros e motos destruídos por acidentes e outros tantos apreendidos por trafegarem irregularmente.
No entroncamento das Rodovias BR – 060 e BR – 153, alcançado às 11h, em Anápolis (GO), está sendo construído um viaduto sobre a rotatória, antigo gargalo, que dificulta a fluidez do trânsito pesado, a qualquer hora das 52/53 semanas do ano.
Os caminhões que vêm do Sul, e seguem para o Norte, levam amostras do Brasil industrializado, produtos manufaturados e, principalmente, alimentos. Os que vêm do Norte, fazendo o percurso contrário, levam para São Paulo os eletrônicos da Zona Franca de Manaus (AM) ou a madeira para alimentar os tornos da indústria moveleira do Sul.
O viajante que, por alguns minutos, assiste ao tráfego pesado que passa pelo entroncamento das Rodovias BR – 060 e BR –153 [3], no trevo de Anápolis (GO), vê nela [BR–153] os sonhos de integração nacional e desenvolvimento econômico.
[3] A BR – 153 liga Belém (PA) a Aceguá (RS), na fronteira com o Uruguai.
Extensão: 3.585 quilômetros.
Entre a capital paraense e Anápolis (GO), é nacionalmente conhecida pela denominação de Belém – Brasília.
(Nota do Autor).
ATUALIZAÇÃO:
em 2007, o viaduto foi entregue ao tráfego e eliminou o gargalo existente no
entroncamento das BR´s 060 e 153, em Anápolis (GO).
Às 11h 04 desliguei-me dos pensamentos sobre a
importância econômica da BR – 153 e, por ela, sobreposta à BR – 060, continuei
a pedalar na proa de Goiânia (GO), 55 quilômetros adiante.
Parei às 11h 30 no Posto Presidente, no perímetro urbano de Anápolis (GO). Muito cedo para almoçar, porém o aroma de bife acebolado me fez mudar de ideia. Degustei deliciosa refeição à base de arroz, feijão, ovos, salada e um bifão envolto em muitas cebolas.
Iniciei a química digestiva pedalando – sem tréguas – 16 quilômetros até Terezópolis de Goiás (GO), a antiga Vila Santa Teresa, elevado à categoria de município em 1992. Eram 12h 44.
Em uma feira, que se estende pelo no perímetro urbano de Terezópolis de Goiás (GO), tomei 1/2 litro de caldo de cana. Senti que precisava de açúcar na veia. Às 13h voltei à lida no pedal. Hidrolândia (GO) a 70 quilômetros.
No céu apareceram umas nuvens de base escura
(estratos) que costumam trazer chuvas ao final da tarde, em virtude do forte
calor durante o dia (àquela hora, a temperatura batia os 34°C).
Às 14h 30 o Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia (GO), passou no meu través oeste e permaneci firme no pedal, atravessando os 19 quilômetros do movimentado contorno [de Goiânia – GO], que desvia o trânsito pesado da área central da capital de Goiás.
Por ser domingo de Carnaval, a movimentação de veículos leves e pesados, rotineiramente frenética naquele trecho, estava tranquila, possibilitando percorrer, pachorrentamente, o Anel Rodoviário ou contorno de Goiânia (GO).
A presença de casas inacabadas e simples às margens da estrada é constante. Crianças brincam próximas às faixas de rolamento, outras jogam bola, indiferentes aos riscos que correm.
Muitas habitações estão inacabadas com tijolos expostos e terracinhos cheios de roupas penduradas no varal. Muitas lajes transformaram-se em pontos para empinar pipas e promover eventos.
No principal acesso a Goiânia (GO), a paisagem muda bastante. O imponente Estádio Serra Dourada, o Carrefour, Walmart, Shopping Flamboyant, hotéis e motéis de luxo, Mc Donald´s (um dos 37 mil pontos de vendas na Terra) informam que ali é uma região imune à pobreza.
É o bairro de Jardim Goiás, um dos melhores para moradia na capital goiana. Embora exista uma área com aglomerado subnormal. (*)
(*) Segundo o IBGE, no Censo de 1991 foi utilizado pela
primeira vez o termo aglomerado subnormal, tendo permanecido o mesmo no
Censo Demográfico de 2010.
O termo “possui certo grau de generalização de forma a abarcar a diversidade de assentamentos irregulares existentes no País, conhecidos como: favela, invasão, grota, baixada, comunidade, vila, ressaca, mocambo, palafita, entre outros”.
(IBGE, 2011, p.26).
Disponível em:<https://web.archive.org/web/20150924100436/http://www.seplan.go.gov.br/sepin/down/aglomerados_subnormais_em_goias.pdf#>. Acesso: 15/03/2006.
Fui pedalando e observando esses contrastes entre o
excessivamente luxuoso e o extremamente paupérrimo, enquanto uma chuva fina
caía, deixando o asfalto ensaboado e o ar com cheiro de terra molhada.
Fiz uma parada às 15h 15 no Posto Aparecidão. O céu estava escuro e a chuva passou para moderada. O calor que se desprendia do asfalto aumentou a sensação de desconforto e uma névoa alvadia e rasteira formou-se a sobre a estrada. Faltavam 25 quilômetros para Hidrolândia (GO).
A Região Metropolitana de Goiânia (GO) é composta por 20 municípios, entre eles Terezópolis de Goiás (GO), Aparecida de Goiânia (GO) e Hidrolândia (GO), entre outros.
Às 17h, com a luz natural bastante prejudicada em virtude das grossas nuvens, cinzas e baixas, alcancei Hidrolândia (GO), a cidade das jabuticabas, árvore frutífera brasileira da família das mirtáceas, nativa da Mata Atlântica.
A hospedagem foi no Hotel Martins, localizado às margens da BR-153.
Do lado oposto ao Hotel Martins, atravessando a
BR–153, tem um posto Ipiranga, no qual jantei bem e assisti ao JN, que destacou
o Carnaval de Salvador, Recife, os desfiles das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro, de São Paulo e....... Boa Noite. Letrinhas subindo.
Dormi cedo e na alta madrugada acordei com o barulho da chuva castigando a parte externa do aparelho de ar condicionado do quarto. Deixei para me preocupar com o mau tempo quando acordasse.
3º dia |
27/02/2006, 2ªf de Carnaval |
Hidrolândia (GO) a Morrinhos (GO) - 100 km |
Tomei o café da manhã de olho no céu nublado, com pequena (?) probabilidade de chuvas, segundo noticiário da TV local. O mau tempo, cinza e robusto, estava estacionado sobre Hidrolândia (GO) e quiçá ao longo da centena de quilômetros até Morrinhos (GO).
E sob esse cenário cinzento e chuva a qualquer
momento, parti às 9h.
Os primeiros 27 quilômetros até o trevo de acesso a Piracanjuba (GO) e Caldas Novas (GO) foram rápidos. Em 1 hora e meia venci um trecho plano e com movimento bem abaixo do normal, afinal era 2ª feira de Carnaval.
Mais 12 quilômetros e cheguei à localidade de Professor Jamil (GO). Enquanto tomava água no posto à beira da estrada, fui saudado por um aguaceiro que caiu com força, como se uma tampa gigante tivesse sido aberta no céu, logo acima de minha cabeça. Uma chuva de pingos grossos, como bagos de uva, desabou em cascata solta.
Fiquei meia hora a esperar por melhoras no tempo. Nada. Resolvi almoçar. Refeição deliciosa. Pouco antes das 13h, voltei à estrada que, a partir daquele ponto, não está duplicada, embora os operários do DNIT estivessem ao longo da rodovia fazendo medições e dando a entender que as obras serão concluídas em breve.
Atualização: a BR – 153 está duplicada de Goiânia (GO) a Monte Alegre de Minas (MG). |
Bem alimentado após o farto almoço, que rolou
enquanto esperava o dilúvio cessar, pedalei [nonstop] por 32
quilômetros até o trevo de acesso às recônditas (desconhecidas) Pontalina (GO)
e Aloândia (GO). Etapa tranquila em pista simples, predomínio de
planuras intervaladas por aclives e declives suaves, possibilitando manter uma
boa média.
Para uma estrada [BR – 153] com trânsito frenético de caminhões indo e vindo, o movimento naquela 2ª feira de Carnaval [felizmente] foi atípico. Poucos veículos circulando, asfalto molhado e temperatura bem agradável.
No trevo de acesso a Pontalina (GO), parada no Líder Restaurante Lanchonete e Churrascaria. Faltavam 42 quilômetros para Morrinhos (GO).
Do interior do estabelecimento, observei nuvens baixas em virtude da pronunciada espessura e com a base escura devido ao bloqueio da luz solar.
São os temidos Cumulonimbus, a nuvem do mau tempo, com grande desenvolvimento vertical e fonte primária da ocorrência de raios na atmosfera. Fiz essa leitura enquanto saboreava uma Coca-Cola com caquinhos de gelo na superfície do líquido.
Decerto a chuva estava à minha espera a poucos quilômetros de onde me encontrava.
Ao passar pelo Posto da Polícia Rodoviária Federal, nas proximidades de Morrinhos (GO) – eram 15h 28 –, ruidosas trovoadas ratificaram a leitura que fiz do cenário meteorológico e deram o tom vespertino daquela 2ª feira de Carnaval.
Começou uma chuva moderada. Abriguei-me no posto
policial. Não tardou, estiou. Continuei. Com pouco minutos de retorno ao pedal,
desabou uma bátega, acompanhada de relâmpagos, trovoadas, raios e uma
torrente de fortes ventos.
Às 16h 30 encontrava-me às portas do Hotel Julykar, em Morrinhos (GO), ensopado/enlameado da cabeça aos pés.
Não tive coragem de ir ao balcão da recepção. Entrei pela porta dos fundos e fiz o check-in após o banho.
Limpo e cheiroso, saí para o jantar. Prato comercial farto, salada deliciosa acompanhada de arroz, feijão, ovos e um bifão com diâmetro pronunciado.
Caminhei um pouco pela pacata localidade de Morrinhos (GO) [4], que abriga uma estátua do Cristo Redentor, em moldes menores daquela localizada no Rio de Janeiro (RJ).
[4] - A denominação do nome "MORRINHOS" é devido à existência de três acidentes geográficos localizados no município: O MORRO DA CRUZ, O MORRO DO OVO E O MORRO DA SAUDADE.
No MORRO DA CRUZ está localizado o ponto mais alto da cidade [900 metros] além da estátua do Cristo Redentor, cuja imagem tem 27 metros de altura e é o principal símbolo de Morrinhos (GO).
MORRO DO OVO, conforme o nome sugere, tem a forma de zigoto e o MORRO DA SAUDADE é onde se localizam dois setores da cidade.
Às 2h da manhã acordei com forte e incômoda dor nos quadris. Nunca havia sentido algo assim, muito menos naquela região do meu corpo.
Fui à recepção do hotel e o funcionário, que assistia ao desfile das Escolas de Samba na Marquês de Sapucaí, me disse, sem tirar os olhos da TV: “hospital, três ruas abaixo, virando à direita”.
Caminhava com dificuldade por causa da forte dor. Começou a chover. "Nada é tão ruim que não possa piorar". Frase anônima.
Cheguei ao hospital. Não havia movimento algum. O corredor principal estava às escuras. Não totalmente. Ao fundo, uma luz fraca e amarelada saída de uma sala lateral, deixando uma réstia de claridade a iluminar o piso de cerâmicas bastante gastas e foscas.
Deparei-me com enfermeira dormindo com os braços apoiados sobre uma mesa metálica fria.
Acordei-a com cutucões em seu ombro esquerdo. “Moça, tem algum médico que possa me examinar, pois estou com uma dor muito forte aqui”, apontando para a região da cintura.
Ela nem abriu os olhos completamente e foi dizendo:
“crise renal, e das brabas”. “Sente-se aí que eu vou chamar o doutor”.
Ela saiu bocejando. A espera tornou-se uma eternidade. Logo chegou um velhinho, cabeça branca, corpo curvado para frente e andar cadenciado pela idade. “E então meu jovem”? “O que você está sentindo?”
“Uma dor muito forte aqui”, apontei com o
dedo para minha cintura.
Ele solicitou para que eu deitasse numa maca sobre rodas que se encontrava encostada numa parede, virou-me de lado e apertou levemente a região dolorida. Fui às estrelas. “É meu jovem, crise renal”. “Teve outra crise antes dessa”?
“Não, doutor!”
“Tudo na vida tem uma primeira vez”, comentou a enfermeira que, àquela hora, recebeu a ordem de preparar Buscopan e Tilatil, que viajaram em minhas veias como uma revoada de garças do Pantanal.
Num átimo a dor cessou. Fiquei deitado por uns minutos até sentir que estava melhorando. Quando levantei da maca, o atencioso médico me fez algumas perguntas e recomendações. As de praxe.
“E então, meu jovem. Moras em Morrinhos?”
“Não senhor, moro em Brasília”.
“Estás em casa de parentes?”
“Não senhor". "Estou hospedado no Hotel Julykar, três quarteirões acima”.
“Bom, faça o seguinte: "volte para o hotel, termine de descansar, pegue seu carro e volte para casa”.
“Não vim de carro, doutor”.
“Não”? “Veio de ônibus”?
“Também não”.
“Estou viajando de bicicleta. Amanhã seguirei pretendo seguir para Itumbiara (GO)”.
"Jesus da Galileia, exclamou o médico" "E eu pensando que, com minha idade avançada, havia visto de tudo nesta vida".
Ele se espantou, me aconselhou a desistir da viagem e voltar para casa.
No meu íntimo, algo me dizia que não teria outra crise e, sem problemas, poderia seguir minha aventura.
Não quis polemizar e fingi concordar com ele. Agradeci a ajuda e voltei ao hotel, agora caminhando leve como uma pluma. A chuva voltou com força.
Dormi assim que deitei-me e acordei às 10h. Quase perdi o café da manhã. Sentia-me disposto e sem dor.
4º dia |
27/02/2006, 3ªf de Carnaval |
Morrinhos (GO) a Itumbiara (GO) - 95 km |
Deixei Morrinhos às 11h com destino a Itumbiara
(GO), 90 quilômetros adiante, sob céu cinza e com nuvens ameaçadoras.
Mas antes de pegar a estrada, passei numa farmácia. Com o receituário do hospital, tomei uma injeção de Voltaren e comprei Buscopan em drágeas. Teria que tomar de oito em oito horas, independentemente de a dor voltar ou não.
Pedalei sem percalços naquela 3ª feira de Carnaval. Percorri a distância de 95 quilômetros até Itumbiara (GO) em cinco prazerosas horas.
Atualização: a BR - 153 está duplicada e pedagiada no trecho de Morrinhos (GO) a Itumbiara (GO). |
Hospedei-me no Hotel Órion, às margens da
BR – 153, próximo à ponte sobre o Rio Paranaíba, que faz a divisa
natural entre os Estados de Goiás e de Minas Gerais.
Depois do banho, saí para caminhar e conhecer a área central de Itumbiara (GO). Nem parecia Carnaval. A prefeitura, sem recursos, não investiu nada na Festa de Momo daquele Ano da Graça de 2006.
Contudo, numa praça às margens do
Paranaíba, havia grande movimentação de pessoas, principalmente crianças.
Fiquei até escurecer, tomei delicioso açaí e tirei algumas fotos. Voltei para o hotel às 21h. Dormi perdidamente até às 9h da manhã seguinte. A dor? Ficou em Morrinhos (GO).
5º dia |
1º/03/2006, 4ªf de Cinzas |
Itumbiara (GO) a Araguari (MG) - 120 km |
Deixei Itumbiara (GO) às 10h daquela 4ª feira de Cinzas,
441º aniversário de fundação da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Atravessei a ponte sobre o Rio Paranaíba, divisor natural dos Estados de Goiás e de Minas Gerais.
Doutro lado da ponte sobre o Paranaíba fica a recôndita (desconhecida) Araporã (MG), um dos 35 municípios que constituem o Triângulo Mineiro [5].
[5] - Diferentemente do que muitos dizem, pensam ou entendem, a Mesorregião “Triângulo Mineiro” NÃO é formada somente pelos municípios de Araguari, de Uberlândia e de Uberaba.
O Triângulo Mineiro é uma das dez regiões de planejamento do Estado de Minas Gerais e está situado entre os rios Grande e Paranaíba, formadores do rio Paraná.
É constituído por 35 municípios, conforme a tabela e os mapas que se seguem.
(Nota do Autor).
OS 35
MUNICÍPIOS QUE CONSTITUEM O TRIÂNGULO MINEIRO. | |||
Municípios | População | Município | População |
1. Água Comprida | 2.093 | 2. Ituiutaba | 92.727 |
3. Araguari | 106.403 | 4. Iturama | 31.495 |
5. Araporã | 6.113 | 6. Limeira do Oeste | 6.492 |
7. Cachoeira Dourada | 2.470 | 8. Monte Alegre de MG | 18.348 |
9. Campina Verde | 18.680 | 10.Pirajuba | 3.694 |
11.Campo Florido | 6.570 | 12.Planura | 10.289 |
13.Canápolis | 11.313 | 14.Prata | 25.511 |
15.Capinópolis | 15.302 | 16.Santa Vitória | 15.492 |
17.Carneirinho | 8.859 | 18.São Francisco de
Sales | 5.167 |
19.Cascalho Rico | 2.799 | 20.Tupaciguara | 23.076 |
21.Centralina | 10.219 | 22.Uberaba | 287.760 |
23.C. Gomes | 3.087 | 24.Uberlândia | 608.369 |
25.C. das Alagoas | 20.426 | 26.União de Minas | 4.593 |
27.Conquista | 6.580 | 28.Veríssimo | 3.667 |
29.Delta | 6.600 | Total (35) | 1.460.591 |
30.Fronteira | 13.983 | Disponível
em:<https://www.cidade-brasil.com.br/mesorregiao-do-triangulo-mineiro-e-alto-paranaiba.html>.
Acesso: 15/03/2006. | |
31.Frutal | 51.766 | ||
32.Gurinhatã | 6.194 | ||
33.Indianópolis | 6.244 | ||
34.Ipiaçu | 4.191 | ||
35.Itapagipe | 14.019 |
Até Tupaciguara (MG), foram 60 quilômetros
bem tranquilos. Trecho plano com retas longas. O nome Tupaciguara, na
língua tupi, significa “Terra da Mãe de Deus”.
De Tupaciguara (MG) até Araguari (MG), outros 60 quilômetros, assim divididos: 30 quilômetros em descida forte até a ponte sobre um braço da Represa de Itumbiara (*) e 30 quilômetros em forte ângulo de subida até a cidade de Araguari (MG).
(*) A Represa de Itumbiara (GO) pertence à UHE (Usina Hidrelétrica) de Itumbiara, administrada por Furnas Centrais Hidrelétricas S.A.
(Nota do Autor).
Ao passar pela ponte sobre o braço da Represa de Itumbiara, parei para fotos. Encostei a bike na mureta. Afastei-me para explorar o local e escolher os melhores ângulos. Passou uma carreta, o deslocamento de ar jogou a bike no chão e o retrovisor quebrou.
Mais à frente, em trecho de 30 quilômetros com subida insana, outro aguaceiro. Cheguei ao Hotel Sogrão, em Araguari (MG), parecendo um pardal na chuva. Eram 18h 19.
Observei o céu com nuvens carregadas enquanto
retornava do jantar para o hotel.
Dormi tão profundamente que sequer escutei uma forte chuva procedente do Alto Paranaíba que passou a caminho do extremo oeste do Triângulo Mineiro.
6º dia |
02/03/2006, 5ªf |
Araguari (MG) a Catalão (GO) - 81 km |
Antes de deixar Araguari (MG), passei numa loja
para comprar outro retrovisor. O funcionário sugeriu um espelho de moto.
Foi instalado o da CG – 125. Ficou ótimo. Campo visual maior. Parti às 12h rumo a Catalão, no Sudeste de Goiás, distante apenas 81 quilômetros.
O Sol brilhava forte. Nem parecia que uma tempestade atravessou Araguari (MG) durante a madrugada.
Ingressei na BR – 050, rodovia que liga o Triângulo
Mineiro a Brasília (DF). Eram 12h 10.
Atualização: a BR - 050 está
duplicada de Brasília (DF) a Araguari (MG). |
Vencido o perímetro urbano e logo após a Churrascaria Alto da Serra, uma descida insana de 10 quilômetros serpenteia a encosta de um morro e termina na ponte sobre o Rio Jordão.
Terminada a travessia do Jordão, subida animal de três quilômetros até o trevo de acesso a Cascalho Rio (MG), Estrela do Sul (MG) e Monte Carmelo (MG).
Eram 13h. Calor senegalês.
Apesar de ter apenas 81 quilômetros entre Araguari
(MG) e Catalão (GO), a etapa é marcada por um sobe e desce nervoso, pois dois
rios (Jordão e Paranaíba) atravessam essa região, originando dois entremontes
(vales) deveras profundos.
Havia vencido o primeiro (entremontes do Rio Jordão). Faltava vencer o segundo entremontes, o mais profundo, a depressão do Paranaíba, rio que separa os Estados de Minas Gerais de Goiás.
Passado o trevo de Cascalho Rico, subidas e descidas moderadas se alternam até a entrada da UHE Emborcação (Usina Hidrelétrica de Emborcação – administrada pela CEMIG - Cia. Energética de Minas Gerias).
E começou a descida da depressão do Paranaíba. Quatro quilômetros ladeira abaixo. Após a última curva, dei de cara com a ponte sobre o Paranaíba, o mesmo que vi em Itumbiara (GO) e marca a divisa dos Estados de Minas Gerais e Goiás. Eram 15h.
Rápida parada no Restaurante do Baixinho, sob a ponte. Coca-Cola e pernas no pedal, pois daquele ponto a Catalão (GO), são 34 quilômetros, 80% em ascensos.
ATUALIZAÇÃO: após a duplicação de 100% da BR - 050, entre
Brasília e o Triângulo Mineiro, essa ponte foi duplicada e a travessia ficou
mais segura para veículos, ciclistas e pedestres. |
Tirar fotos de um mesmo lugar pode parecer
repetitivo, mas não é. A luz nunca é a mesma do minuto anterior. Muito menos as
condições atmosféricas.
Quando fui [de bike] à minha terra natal, o Rio de Janeiro (RJ), entre 26/12/2001 e 05/01/2002, passei por essa ponte sobre o Rio Paranaíba. Era época de chuvas (verão) e o rio estava cheio, com pronunciado volume de água, que aparentava aspecto barrento, parecendo café com leite, em virtude da turbidez e da pouca decantação.
Agora, em pleno fim do verão e com a redução gradativa das chuvas, as águas estavam menos turvas e com discretos tons azulados e esverdeados. O Sol das 15h – incidindo 45º em relação à superfície líquida [do rio] – deixava um rastro prateado.
Uma foto tirada do mesmo rio ao meio-dia, por exemplo, não expressa as mesmas condições descritas quando tirada, por exemplo, às 15h ou às 9h.
Por isso, mesmo que pareça repetitivo, capturar fotos do mesmo lugar, repetidas vezes, não pode ser considerada a "mesma coisa". Mesma coisa é caroço de melancia.
Atravessei
a ponte sobre o Paranaíba pela passagem lateral, exclusiva para pedestres, que
tem mais pescadores do que pedestres. Fui empurrando a bike e
contemplando aquelas águas transparentes e prateadas pelo Sol. Ao chegar doutro
lado, estava em Goiás. Para minha casa faltavam 352 quilômetros.
Até
aquele ponto havia pedalado, desde a saída de Brasília (DF), no Sábado de
Carnaval, 574 quilômetros. Havia vencido 2/3 do trajeto. Faltavam 32
quilômetros para Catalão (GO).
Montei na bike após a ponte e
segui por uma reta de uns 200 metros. Curva à direita. Começou a subida
para sair da depressão do Paranaíba. São quatro quilômetros em forte ângulo
ascendente, com faixa adicional e acostamento.
No trevo de acesso a Anhanguera (GO), a inclinação vai diminuindo aos poucos e, até Catalão (GO), subidas fortes e descidas suaves se alternam com poucos trechos planos.
Os 32 quilômetros restantes foram vencidos em 2 horas. A média caiu em virtude de haver mais subidas em relação às descidas.
A estrada naquele trecho é apertada, sinuosa e o acostamento estreito. Para quem faz esse trajeto de carro não percebe o aclive. Ele é discreto. Para quem tem apenas que pisar no acelerador passa despercebido. Mas para quem pedala e a tração é feita por pernas, a coisa muda completamente.
O aclive, por mais suave que possa parecer, reduz a velocidade e com a bike carregada, aumenta a dificuldade.
Seguia nem devagar nem depressa, apenas no meu ritmo sempre igual. E assim, cheguei, às 17h 10, à entrada secundária de Catalão (GO), cujo acesso é feito pela avenida lateral ao Posto JK. Hospedei-me no Hotel Champion.
À noite degustei deliciosa pizza servida no quarteirão próximo à estalagem. Depois caminhei um pouco pelo centro e, antes das 22h, estava dormindo. O dia seguinte prometia.
De Catalão (GO) ao Hotel Sonho Verde (GO) são 153 quilômetros com reduzidos pontos de apoio.
7º dia |
03/03/2006, 6ªf |
Catalão (GO) ao Hotel Sonho Verde (GO) - 153 km |
Deixei Catalão (GO) às 8h 30. O Horário de Verão havia acabado há duas semanas. Era mês de Março. Fim de Verão. Os dias não são tão longos como no início da estação.
O ocaso (pôr do Sol), anunciando o fim da luz natural, estava previsto para às 18h daquela 6ªf. Foi preciso pedalar forte, parar rapidamente e poucas vezes. Havia previsão de chuvas para o fim do dia.
Os primeiros 72 quilômetros entre Catalão (GO) e Campo Alegre (GO) são sinuosos, com aclives e declives de moderados a fortes. Fiz esse trecho – o mais difícil do dia – em quatro horas, com rápida parada no Posto Eldorado.
Em Campo Alegre (GO) ocorreu a segunda parada do dia. Era preciso comer algo. Almocei muito bem no Posto Xará.
Voltei à estrada às 13h. De Campo Alegre (GO) em diante, o relevo é plano, a estrada tem retas intermináveis e foi possível aumentar a média horária de 18 km/h para 20 km/h. Para uma bike, esse aumento é considerável.
Programei pedalar os 60 quilômetros seguintes, sem tréguas, até o Posto Ponte Alta, no Município de Ipameri (GO). E consegui.
Enquanto tomava delicioso café expresso na lanchonete do Ponte Alta, ouvi, apesar de distante, o som inconfundível de uma trovoada. Começou a ventar forte. Aquele vento que traz a chuva.
Quando saí do estabelecimento, vi o céu coberto por
nuvens plúmbeas (cor de chumbo), os cumulonimbus – a nuvem do mau tempo.
Subi na bike e pedalei forte. “Essa chuva não vai me pegar. Ainda está longe”, pensei.
Não tardou e começou a chover a cântaros. A solução foi relaxar e pedalar. E assim foram os 10 quilômetros finais até chegar ao Hotel Sonho Verde e curtir merecido descanso e deliciosa refeição.
Chegada ao Hotel Sonho Verde. Foto: Fernando Mendes.
8º dia |
04/03/2006, Sábado |
Hotel Sonho Verde (GO) a Brasília (DF) - 166 km |
Acordei antes das 7h, tomei delicioso café da manhã
e parti para o último dia de viagem. Um moderado vento contra me atrapalhou,
mas consegui vencer aqueles 33 quilômetros até Cristalina (GO) em duas
horas.
Eram 10h quando atravessei o perímetro urbano [de Cristalina - GO] e fiz rápida parada no Posto JK. A partir daquele ponto, a BR-050 encontra a BR-040, que vem de BH e Rio, e se sobrepõem. Prevalece a BR-040 até Brasília (DF).
Do Posto JK até a divisa Goiás com Distrito Federal são 95 quilômetros. Da divisa à minha casa, são 38 quilômetros, totalizando 133 quilômetros, acrescido dos 33 quilômetros percorridos, desde a saída do Hotel Sonho Verde, perfazem 166 quilômetros naquele último dia de jornada.
Até a ponte sobre o Rio Furnas, foram 30 quilômetros de declives suaves e moderados, percorridos em 1h 20 minutos, com média de 25 km/h.
Passada a ponte sobre o Rio Furnas, vem uma subida em três etapas, assemelhando-se a um tobogã. Após o terceiro aclive, parei na Pamonharia Recantus. Comi pão com linguiça e queijo e tomei uma Coca.
De volta ao pedal, novo declive até a ponte sobre o Rio São Bartolomeu, que divide os municípios de Cristalina (GO) e Luziânia (GO).
Atravessei a ponte e encarei cinco quilômetros de subida até a placa que indica Luziânia (GO) a 30 quilômetros. Eram 12h 30.
Começou uma chuva fina. Alguns quilômetros à frente
veio a maior subida daquele último dia: a Serra do Mané Preto, uma borda de
chapada com quatro quilômetros de aclive e duas curvas em “S”. Cronometrei o
tempo de subida: 23 minutos. Nada mal.
Terminada a subida, parei no Posto Corujão, renovei estoque de água, almocei esplendidamente e segui. Faltavam 75 quilômetros para minha casa. Eram 13h 30.
Passei pelo trevo de acesso a Luziânia (GO) às 14h. Dali em diante, a pista é duplicada e o trecho bastante perigoso por atravessar os municípios que fazem parte do Entorno Sul do Distrito Federal.
Luziânia (GO) – 196.046 habitantes, Jardim Ingá – 80 mil habitantes (Distrito de Luziânia), Cidade Ocidental (GO) – 48.589 habitantes e Valparaíso (GO) – 114.450 habitantes.
Dados IBGE 2000.
São cidades dormitório, densamente habitadas, nem sempre com a infraestrutura básica (moradia, transporte, segurança, educação e saúde) condizente com as necessidades da população.
Muitas comunidades, surgidas em terrenos invadidos, chegam às margens da rodovia (BR-040) e parecem invadi-la.
Profusão de carros, conduzidos por motoristas descuidados, acessam tais comunidades de forma desatenta e, não raro, trafegam pelo acostamento, misturando-se a carroças, ciclistas na contramão, pessoas esperando ônibus em paradas improvisadas e pedestres desatentos, dando o tom dos perigos dessa região tão pobre e esquecida pelo poder público.
Às portas de um humilde empório avistei uma faixa: “O sangue de Jesus tem poder”. Amostra da dimensão da fé que suporta tudo, até mesmo viver no Entorno, tão violento e sem lei.
De hipermercados a pequenos empórios, o Entorno do Distrito Federal tem estabelecimentos para as variadas classes sociais que coabitam aquele espaço.
Vi várias placas com fotos de políticos desejando “Boas-Festas”,
“Brasil rumo ao Hexa” e “por um município sem violência”.
O Entorno do Distrito Federal, assim como muitas outras periferias, tem motéis de arquitetura bizarra, as casas, em sua maioria inacabadas, com lajes, tendo roupas penduradas em varais sustentados por bambu.
Um mar de antenas parabólicas. Ferros-velhos. Churrascarias. Serralherias. Borracharias. Oficinas. Assembleias de Deus. Inferninhos. Botecos (são predominantes).
Afinal molhar a palavra parece ser o único lazer dessa gente [humilde], que Chico Buarque imortalizou numa canção – Gente Humilde – em parceria com Vinícius e Garoto.
Essas imagens, aos olhos de um ciclista, passam lentamente. Podemos saboreá-las com detalhes. Quem passa de carro, não vê tudo isso com os mesmos detalhes.
Centenas de profissões formais e informais - os
famosos “bicos”- se fazem presentes em cartazes
escritos com grosseiros erros de ortografia, acentuação, pontuação e concordância.
Nos ferros – velhos, carros depenados, despedaçados, entortados ou abandonados nas ruas sem calçamento e com esgoto correndo a céu aberto. Pareceu-me um pedaço de Cabul (capital do Afeganistão) ou de Bagdá (capital do Iraque). Quando começou a guerra por ali?
Crianças empinam pipas sobre as lajes ou à beira da estrada, correndo igual perigo de queda ou atropelamento. Pedestres ignoram as passarelas e arriscam-se atravessando a estrada [BR -040] deveras movimentada.
Motoqueiros fazem conversões proibidas, atravessando o canteiro central coberto pelo mato. Carros particulares e vans piratas param em qualquer ponto da estrada, sem o menor aviso, para embarcar e desembarcar passageiros, que sofrem com um transporte público precário, caro e de má qualidade. As frotas são constituídas de ônibus velhos e superlotados.
Esse é o Entorno do Distrito Federal: 810 mil habitantes. 150 homicídios na região entre Março e Setembro de 2005. 109 dos mortos tinham entre 19 e 26 anos. A maioria do sexo masculino.
O Entorno não tem presídios, os postos de trabalho são escassos, os hospitais públicos pecam pela qualidade, as escolas são tão precárias quanto a qualidade do ensino.
Existe apenas um IML, em Luziânia (GO), para atender 22 municípios. Conta com três médicos legistas. Com tanta precariedade, os moradores da região correm para Brasília (DF) em busca daquilo que não existe (ou existe de forma fortuita) nos municípios do Entorno do Distrito Federal.
O resultado aparece nos hospitais superlotados, criminalidade crescente, empregos informais, que transformaram o Plano Piloto de Brasília (DF) num enorme camelódromo e paraíso de pedintes e desocupados.
Às 16h atravessei a divisa de Goiás com Distrito Federal e deixei o Entorno do Distrito Federal para trás. Faltavam 38 quilômetros para minha casa, vencidos em 1 hora e 40 minutos.
Às 17h 40 cheguei, com aquela sensação de dever cumprido.
Que venham outros carnavais e quem
venham muitas viagens de bike.
Grato pela leitura.
Fernando Mendes.
Brasília (DF), 15/03/2006.
Os dados relativos ao Entorno do Distrito Federal são do Jornal Correio Braziliense, 15/09/2008, Caderno Cidades, página 17.
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